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LIBERTADORES DE FEIRA. Por Franciel Cruz.

Uma das poucas serventias de Feira de Santana é confirmar o velho axioma de que geografia é destino. Encravada entre as malícias do Recôncavo litorâneo e as armadilhas dos Sertões, a referida e agreste urbe nunca conseguiu superar o trauma de ser apenas um entroncamento, lugar de passagem, de desmemórias.

Talvez isso explique os porquês de um dos principais personagens da localidade ter sido renegado até recentemente por quase todas as correntes ideológicas e sociais. Aliás, pior, chutado para o escanteio da história com o mesmo desprezo e furor com que estes beques ordinários comemoram bicudas para a linha de fundo como se estivessem marcando um gol.

Sim, amigos de infortúnios, em qualquer lugar, um escravo que fugisse do chicote do opressor e, durante duas décadas, causasse transtorno ao, com o perdão do clichê anglicista, establishment seria louvado ou, no mínimo, teria sua rebeldia reconhecida por fatia considerável da população. Mas não em Feira de Santana, terra de olvidamentos. Lá, Lucas da Feira, eis o nome do Cristo-Exu (para usar uma expressão do jornalista Franklin Maxado) não ilustra sequer o nome de uma rua ou um beco qualquer. Também pudera. Nem o próprio Movimento Negro local aceita Lucas Evangelista plenamente.

É fato que, nos últimos anos, há uma tentativa de, digamos assim, compreensão do personagem histórico. Porém, durante muito tempo, a trajetória do intimorato só era relatada pelos que estavam do outro lado do balcão, a exemplo do oficial de Justiça Souza Velho, que, ainda no século XIX, escreveu o ABC de Lucas da Feira, ou o delegado de polícia Guimarães Covas, que, em 1907, se propôs a fazer um relato “desapaixonadamente’ e classificava Lucas como “um temível facínora”. Há ainda as vozes de Alberto Silva, que produziu Lucas, o Salteador, ou a de Sabino Campos, eternizando Lucas, o demônio negro.

Saindo dos entretantos e partindo para os finalmente futebolísticos, informo que foi com júbilo que a torcida Rubro-negra recebeu a notícia de que a última partida desta etapa inicial do FELICIANÃO seria disputada na referida e contraditória localidade. Sim, poucos lugares têm tanto a cara do Leão quanto Feira de Santana. Afinal, o Esporte Clube Vitória, mais do que uma agremiação esportiva, é um oximoro ambulante.

Exemplos? Recebam.

O Clube, que abandonou as competições no início do século passado porque não queria se misturar com colored, denominação que a imprensa de então usava para designar e estigmatizar os negros ou as ‘pessoas de cor, atualmente tem o termo “nego” como nome carinhoso e grito de guerra. Dizem que isso ocorreu por causa de um erro de uma torcida organizada que gritou Leeãao e o resto do estádio entendeu neeegooo. Mas pouco importa. O fato é que o antigo e elitista Club de Cricket Victoria tornou-se a equipe com maior número de torcedores nos bairros populares e de menor poder aquisitivo em Salvador.

Ok, minha comadre, sei que a senhora, impaciente com todo este bolodório, quer ouvir uma palavrinha sobre o desempenho do argentino, né?

Então, seguinte. Em 1953 (ih, fudeu, o homem hoje tá numa nostalgia dos 600), o Vitória decidiu finalmente se profissionalizar, abandonando o amadorismo. E aí aconteceu mais uma fundamental contradição. Apesar de ser o primeiro Clube nacional fundado por Brasileiros, o Leão foi buscar exatamente um estrangeiro, o argentino Carlos Volante (sim, ele, o mito, o cara que emprestou seu sobrenome à posição), para ser o técnico da equipe nesta nova empreitada. E num é que o sacrista chegou logo brocando hegemonias e ajudando o Rubro-negro a conquistar dois campeonatos ?

Pois muito bem.

Exatos 60 anos depois, outro argentino faz história no Rubro-Negro, também quebra um jejum (agora, pequeno) e contribui para outro título estadual. Porém, Maxi Biancucchi, eis a nome do endemoniado, tem feito mais. Ele trouxe de volta um misto de orgulho e admiração, revivendo ícones argentinos que já honraram a camisa Rubro-negra, a exemplo de Rodolfo Fischer, El lobo, e o mitológico goleiro Andrada, El gato, aquele da defesa de mão trocada. (Sim, é verdade que, como contrapeso, existiram também embustes como a dupla sertaneja Lucas Nania & Mariano Trípodi…)

Mas, a questão central é que o Rubro-negro faz história neste 2013, realizando o sonho de Bolívar (não o zagueiro ordinário) de construção da pátria latinoamericana integrada e de conquista da vaga libertadora.

E não havia terreno melhor para isso do que o estragado gramado do Estádio de Feira de Santana. Naquele árido terreno para os nativos, o Vitória, sabiamente, decidiu contar com o auxílio luxuoso dos hermanos. Era como se a localidade, que rejeita seus destacados personagens, estivesse marcada para acolher a glória da legião estrangeira.

E o primeiro gol (sim, aqui tratamos também da peleja em si) foi exatamente do paraguaio Cáceres, numa espécie de vingança e demarcação de terreno, já que a cidade possui a maior feira paraguaia de todos os 18 continentes, a fabulosa Feiraguai.

Menos de dois minutos depois, Éderson provocou um fuzuê e fez o gol de empate. Porém, aos 35 minutos, Maxi Biancucchi armou um salseiro na defesa atleticana e chutou de dois dedos (aquele tiro que o cara tenta acertar com o peito do pé, mas sai uma trivela mascada) para brocar novamente. Golaço.

Quando tudo parecia se acalmar, as tropas alemãs, comandadas por aquele sujeito que tem sobrenome de laboratório, mandou uma de suas eternas e venenosas bolas para a zona do agrião, estabelecendo uma muvuca dos 600 e o novo empate no placar.

E o feitiço só foi quebrado aos 42 minutos da etapa final, quando o outro argentino, Damian Escudero, fez renascer esta inexplicável magia entre estas duas nações, Vitória e Argentina. Aquela cutucada, logo após o escorregão, fez a multidão cantar em portunhol castiço. “Dale, dale, mi león! Leóóóón…”.

Ah, sim. Por falar em cantar, cliquem no linque abaixo e ouçam sem parar para compreender o motivo fundamental da mágica ligação entre Argentina e esta Província lambuzada de injustiças, plágios e remelexos.

Por: Franciel Cruz

Link: YouTube

P.S Ah, sim. Outro herói rejeitado pelas grandezas de Feira de Santana é o cara do isopor que trabalha no Estádio.

Provavelmente por desconhecer as rígidas recomendações da impoluta CBF, o vendedor ambulante sempre se aproxima do muro e joga o cordão amarrado numa pedra para fora do Jóia da Princesa. Depois, candidamente, puxa o cordão, que vem acompanhado de uma caixa cheia de cerveja… com álcool.

Não é possível compreender nem explicar os motivos de os meganhas ficarem perseguindo tão boa alma, legítima herdeira da rebeldia de Lucas da Feira.
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